top of page

Amante da mata, viajei ao interior para conectar-me à mãe Terra e renovar minhas energias, exauridas pela pressa desmedida da sociedade atual. Fui desbravar uma trilha por mim desconhecida. Os boatos ouvidos diziam-na levar a uma cachoeira fabulosa! Apaixonado por água como sou, fui sozinho levando comigo apenas uma pequena bolsa tiracolo e um cantil. Estacionei o carro num restaurante próximo ao início da trilha indicada ao mapa e, talvez pelo avançado manso do dia e o frio da madrugada que resistia ao sol nascendo, não cruzei por uma pessoa sequer. De lá, segui pela estrada de chão batido sorvendo o delicioso aroma do pasto salpicado de relento. Encontrei a entrada da trilha e adentrei na mata.


A trilha estava escondida pela mata recém-crescida. Vez ou outra aparecia uma bifurcação dúbia quanto à continuidade da trilha, mas bastava testar um caminho para saber qual era o certo. Geralmente a mata fechava-se tanto que era mais sensato voltar à bifurcação e testar o outro lado. Além do mais, com o dia todo pela frente, perder-me significava explorar o desconhecido e aprender o novo. Após uma breve parada para um lanche rápido, cheguei à cachoeira. Que deslumbre! Ela possui três ou quatro andares de queda d'água, cada um com uns dois metros de altura. A queda mais acima de todas salta à uma distância considerável da parede de pedra formada por um único monolítico, de modo que é possível entrar atrás da cascata. De lá, o curso do riacho forma quase que um bolsão de remanso profundo até o meio da coxa, com areia e pedregulhos no fundo; uma piscina natural de água corrente.


Para entrar em contato com toda aquela energia e renovar-me, não tive dúvidas em despir-me e mergulhar naquela piscina paradisíaca. Abracei a água, massageei os pés nos pedregulhos do fundo do rio, segurei-me contra a força da cachoeira para deixá-la levar-me as preocupações e inundar-me com sabedoria e absorvi a harmonia entre os insetos, plantas, musgos, pedras, luz, sombras e água. Por fim, deitei-me de costas no trecho mais calmo do bolsão de água, apoiando minha cabeça nas pedras arredondadas e alisadas pela força da água durante as cheias, perto da margem. Fechei os olhos para transferir a intensidade dos sentidos aos demais que não a visão. Absorvia aquela paz quando ouvi uma voz agradecendo ao rio por sua generosidade. Abri os olhos sobressaltado e vi uma senhora à margem, próxima de mim, enchendo uma espécie de cantil feito de porongo. Nossos olhares se tocaram e senti-me corar: perdoe-me senhora, se minha nudez ofende sua moral; vou logo me vestir. Bhs, ela respondeu, sou índia e não vejo desrespeito em suas atitudes. Você até parece um índio... um tanto feio e desnorteado, mas parece.


Fiquei desconcertado sobre a inferência dela a respeito de meu estado de espírito, por ela ter acertado. Começamos a conversar e ela me contou ser pajé Guarani. Simpatizamos um com o outro talvez por eu ter espírito de índio, segundo ela. Talvez eu até tivesse sido pajé um dia, brincou. Venha comigo, ela disse, vou pedir conselhos à força mais poderosa deste mundo... talvez ela possa te ajudar, se você permitir; venha com a alma limpa, a mente leve e o corpo aberto. Deixe todo o resto para trás, não precisa mais dele.


Segui a velha pajé mata adentro quando ela parou de súbito. Tshh, fique quieto, ordenou-me. Estamos perto. Sente-se, feche os olhos e não faça um único barulho. Obedeci, sem desconfiança de que ela quisesse fazer-me algum mal. Mesmo assim, mantive todos meus demais sentidos atentos ao máximo. Eu ouvia o vento farfalhando algumas folhas ao longe, alguns pássaros cantando e sapos coaxando. O cheiro de terra molhada estava forte, mas não o havia sentido até então. Uma brisa cálida tocava-me a pele desnuda e sentia os pingos caindo dos cabelos e escorrendo quase fazendo cócegas. De repente, um silêncio fez-se presente. Após um tempo, um desconcerto invadiu-me. Lutei para permanecer naquele estado de quase meditação, mas o temor que alvoroçava a mente venceu-me. Abri os olhos na expectativa de ver a índia cochichando com alguma planta, porém vi nada além da floresta. O pavor acelerou minha frequência cardíaca e um frio percorreu a barriga. Não marquei mentalmente o caminho que fizemos até lá e mesmo que o marcasse, não sei se saberia voltar sozinho. Confiei que estaria sempre ao lado da pajé nessa pequena viagem, mas ela desapareceu!


Inspirei fundo, bem fundo, e expirei lentamente, três vezes para acalmar-me. Disse a mim mesmo que conseguiria, que tudo ficaria bem. Controlei o pânico, levantei-me, e procurei sinais na mata que indicassem por onde a índia fora. Nada. Ai ai. Tudo bem. Terei de encontrei meu caminho por conta. Pelo menos sabia de qual direção nós viéramos. Contudo, fiquei curioso. Já estava lá mesmo e gostaria muito de encontrar a força mais poderosa deste mundo. Fechei os olhos, girei meu corpo lentamente duas vezes (para não ficar tonto), comecei a andar lentamente para não tropeçar e após ter decidido a direção, abri os olhos e segui esquivando-me dos galhos por um caminho que não formava trilha alguma. Em último caso, tentarei encontrar um rastro de água e seguir-lo-ei. Não será de sede a minha morte.


Caminhei quase a esmo por um tempo. Parei para descansar um pouco. Preciso economizar energias. Pensei ter ouvido um som de água. Deixo meus ouvidos guiarem e volto a trilhar sem deixar rastros. O som de água corrente intensifica-se e quando encontro o fio d'água, vislumbro uma árvore absolutamente soberana na mata: a rainha da floresta, pensei. Pela largura de seu tronco na base, supos sê-la centenária, ou até mesmo milenar. Quanta energia já percorreu por seus vasos, quantas gerações de vida já não se relacionaram com ela, quanto ar suas folhas já não respiraram? Tenho certeza que essa árvore já conheceu o mundo inteiro através da atmosfera que sorveu durante sua vida! Aproximei-me encantado e olhei para o alto, buscando sua copa. Ela parecia mais alta que todas as demais árvores ao redor. Percorri seu perímetro, sempre tocando-lhe com a mão. Por fim, abracei-a.


Não queria me desligar dela enquanto não sentisse realmente sua energia. Uma vez ao menos, levaria eu o tempo que fosse abraçado a uma árvore. Não havia ninguém a quem atrasar além de mim. Ignorei a ansiedade de escurecer enquanto ainda estivesse perdido na mata e minha mente ficou leve. Os pensamentos cessaram. Pendi todo meu peso na árvore, sem temer escoriações ou dor. E por um instante, senti-me entre as folhas de sua alta copa. Tentei segurar um de seus galhos mais altos e voltei à mim quando uma dor no cocuruto provocou a reação imediata de abaixar-me, protegendo o resto do corpo, e apertar o ponto de dor com a mãos, como se para estancar de imediato um eventual sangramento.


Bsh, é índio mesmo!, ouvi a velha pajé exclamar com um rosto redondo de surpresa. Pensei que o Grande Jequitibá-Rosa te daria um pedaço de casca, pequeno até, mas ele te deu um toco inteiro! Você precisa comer toda a casca dele e mais metade da madeira. Com o que sobrar, faça um amuleto. O seu amuleto! E antes que me pergunte, você saberá como e qual fazer. Ui... então você estava aqui o tempo todo?, perguntei-lhe enquanto pegava o toco que recebera. Sim e não, ela respondeu. Eu estava voando com o Grande Jequitibá-Rosa para conhecer o Mistério que os Espíritos me concederam saber. Quando te vi lá no alto também, fiquei surpresa e muito contente também. É índio mesmo. Daqui para frente saberá se virar... quanta alegria! Um toco todo desse tamanhão! Tshitshitshitshi... É bom, bom. O sol já está deitando. E eu vou voar novamente, não nos veremos mais. Cubra seu corpo todo com a lama desse riachinho, para se proteger de picadas.


De súbito, ela me abraçou. Durante sua companhia, eu ficara com uma pontada de desconforto pensando estar ferindo-lhe o pudor. Mas o desconforto desvaneceu no abraço dela e abracei-a de volta. Por um instante senti sua alma jovem, forte e cálida, como se a conhecesse há muito. Soltamos-nos, ela contornou o Grande Jequitibá-Rosa e sumiu. Cobri-me com a lama e segui o curso do riacho comendo a casca de meu toco. Não sentia medo do escuro adentrando a floresta.


A cada passo meu, parecia que o sol dava dez em direção ao seu leito. Escurecia rapidamente e fiquei aliviado por ser época de calor. Não precisaria de fogueira para passar a noite. Apesar de que seria bom ter alguma fonte de luz para continuar caminhando. Após a terceira batida de testa em galhos baixos, ou eu me atentava ao chão para pisar em falso ou olhava para a frente a fim de evitar colisões indesejadas, resolvi que era mais seguro esperar o raiar da manhã. Os documentários de sobrevivência na selva não foram lá tão úteis quanto poderiam. Arrisquei-me dormir sobre folhas juntadas e torci para não ser banquete de formigas nem de insetos ou outros animais peçonhentos. Ainda tinha a inocência imaculada de que estando em harmonia com a floresta, ela cuidaria de mim também. Contra expectativas próprias, adormeci como um neném em seu berço.


Eu sonhei com uma árvore. O Espírito do Grande Jequitibá-Rosa desprendeu-se de seu corpo físico e fez uma viagem astral, levando-me consigo. Veio buscar-me em meu leito de folhas e com carinho, mas firmeza, bateu em minha testa enquanto puxava meu espírito pelo coração. Desprendi-me e tudo era claridade. Não distinguia formas, apenas ouvia um trovão grave que ribombava até o longe. No fundo de mim, ouvia milhares de perguntas atropeladas, quase indistinguíveis, como se a mente, deixada para trás, tentasse compreender o que está além de suas possibilidades. Logo me tornei desapercebido de suas infindáveis perguntas e os trovões tornaram-se inteligíveis.


"Sentes tu a plenitude do Nada?, essa paz da certeza de Tudo. Ela existe apenas quando deposto o repositório carnal. Contudo, podes buscá-la e quase mesmo chegar a tocá-la enquanto vivo. Encontrar-la-á primeiro em ti. Antes de invadir-te, irradiarás primeiro a tua própria luz; e então poderás ser inundado pelo Infinito que contemplas nesse exato agora. Vejo que tua chama já se acendeu, graças ao calor de outra vida, mas te é difícil mantê-la por conta. Minha casca e lenho, maturados por eras em comunhão com a Mãe Terra, ajudar-te-ão. Queima-os em ti e tua chama arderá intensamente, porém breve; tão quente que corres o risco de consumir-te junto. Entretanto, sobrevivendo, a luz que produzirá far-te-á encontrar em ti teu calor escondido, oculto, desapercebido, misteriosamente inexplicável. Usa-o para manter teu brilho! Combustível e comburente tens de sobra; completas o triângulo de teu fogo-luz e a Luz misturar-se-á à tua."


O silêncio tornou-se sepulcral, contudo, do brilho homogêneo uma forma delineou-se. Identifiquei a forma física do Grande Jequitibá-Rosa e dele saiu um objeto. Ou ele se aproximava de mim, ou eu dele. Toquei-o e percebi tratar-se de uma caixa rústica, um baú bruto feito do lenho do próprio Jequitibá-Rosa. Havia uma ranhura que sugeria ser a tampa do baú. Descobri uma fechadura, sem sinal da chave. De súbito, um pássaro em vôo rasante corta minha atenção e pousa numa sombra semelhantes a um galho. Canta como fosse um instrumento metálico de sopro solando numa orquestra. O timbre tão irreconhecível aos meus ouvidos destaca seu bico. Vejo-o serrilhado em inusitada forma, como se parecesse, tal qual, semelhante, é uma chave! Canalizo minha intenção de pegá-lo e antes do primeiro passo um abismo assoma-se entre nós. Contemplo sua escuridão profunda e estagno. O pássaro canta novamente e faz que levantará vôo. Precipito-me em sua direção por sobre o abismo sem fundo e vôo. O pássaro bate suas asas cantando uma melodia alegre e voa também. Voamos juntos até o baú e adivinhando minha intenção, o pássaro soltou seu bico em minha mão. Meu coração aqueceu-se pelo gesto de sacrifício, pela doação incondicional do pássaro a mim e lamentei ter apenas a minha gratidão para retribuir. Senti as cascas do Grande Jequitibá-Rosa queimando ardorosamente em mim! O pássaro cantou alto, tão intensamente como um trovão rimbombando pela infinidade daquela não-existência e voou. Pude então abrir o misterioso baú, o guardião do segredo, que gentilmente mo revelou. De seu interior flutuou até mim uma semente, a rara semente de um jequitibá-rosa, do Grande Jequitibá-Rosa. No instante em que a segurei nas mãos, ela se transmutou no meu amuleto!, meu totem!, meu pêndulo! E então eu soube.


Os pássaros começaram a cantoria saudando o dia novo que escalava os céus. Acordei revigorado e com uma idéia pronta na cabeça. Segui meu rumo pelo riacho comendo o lenho do meu toco até ele estar no tamanho certo para eu esculpir meu amuleto. E antes que eu me desse conta, o riacho encontrou uma queda nas rochas e transformou-se em cachoeira. Na cachoeira em que encontrei a velha pajé no dia anterior. Vi na margem minhas roupas, tênis, tiracolo e cantil, tal qual deixara. Banhei-me na cachoeira para tirar a lama-armadura, prostrei-me procrastinando para secar enquanto a idéia encorpava-se no consciente. Vesti-me, tirei um canivete de minha bolsa e pelo caminho de volta esculpi meu amuleto — que guardo até hoje comigo para os momentos mais difíceis — sussurrando repetidamente a mim mesmo que eu não seja consumido junto, que eu não seja consumido junto.


Durante a semana seguinte, pus a idéia no papel e dali em prática: é a semente, que o Grande Jequitibá-Rosa me deu, germinando já com ímpetos de espalhar-se. É o baú-de-mistério, a arca-de-segredo, materializada pela comunhão do Espírito da Árvore com a Mãe Terra, impregnada da energia necessária para cada qual sustentar sua combustão e iluminar seu caminho até nos momentos mais escuros, nos quais a luz parece ser devorada além de poucos palmos e o frio teima apagá-la. Que cada qual encontre dentro da arca-de-segredo o seu toco e ao segurá-lo, que ele se transmute no totem pessoal, no amuleto íntimo do seu ser, intransferível e único, guia interior de sua vida.

 

Ouça o canto, as primeiras vozes do sabiá;
Mesmo sem a doçura dos seus cânticos de amor,
Elas possuem a chave que revelará
Da arca-de-segredo o seu imaculado interior.

São José dos Campos, agosto de 2016.

bottom of page