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Séculos na Prisão


O desrespeito à vida é um presente muito difícil de recusar; ao aceitá-lo, há uma troca de energia entre algoz e vítima e ambos terminam por carregar consigo algo que não lhes pertence. Possuir a energia de outrém é um fardo progressivamente mais insuportável, é um erro, é um roubo, é uma violação. A vida buscará reparação, enantiodromia. A consciência de cada ser acusará a ferida que dilacera a alma, ingenuamente tamponada com um curativo alheio cujo efeito é escancarar a necessidade de perdão.

A cada vida que não morremos completamente, parte da nossa energia permance aprisionada; o vazio existencial, o inconformismo, a sensação de não fazer parte deste mundo são sintomas de uma alma fracionada em múltiplas existências. Um vínculo tão forte e intenso acompanhado da ausência de resignação perante tão assombrosa ofensa aprisiona o ofendido naquele instante do tempo. E daí por diante, em todas as suas vidas, haverá sempre o olhar para o passado e a ausência no tempo presente... E tudo dentro de si clamará pela cura e o fluxo da existência sempre convergirá para unir ofensor e ofendido até que o perdão se realize e cada um devolva a energia do outro.

 


Holanda, julho de 2020. Numa noite de verão deitei-me para dormir enquanto minha esposa zapeava o Instagram imersa em sua própria busca. Adormeci e sonhei. No dia seguinte, anotei parte do sonho e apenas vagamente mo recordo. Éramos três numa cômodo de uma casa, quiçá a alcova de meus pais na casa que cresci, em um dia abafado, mais nublado que ensolarado. Meu irmão incitava-me (ou encorajava-me?) na direção de nosso pai. "Revele-se a ele". Toda minha energia feminina aflorou e eu deveria mostrar a meu pai a mulher dentro de mim. Após acordar, tive uma ideia bastante criativa para desenvolver como hobby e pensei existir alguma relação minha criatividade e minha energia feminina represada.

Holanda, por cerca dos anos 1463. Está anoitecendo e a temperatura é agradável, amena até. Estou às margens de um canal, num local com pavimentação de pedra um tanto quanto esverdeada, talvez de musgo. Meus cabelos castanhos claros ondulados são compridos até metade do tronco e uso-os solto caindo-me por ambos os lados do corpo. Meu vestido é de tecido leve, de uma cor escura, amarrotado. Estou ansiosa e feliz. Sou jovem e serei mãe! Meu ventre já começou a crescer e sinto-me linda com a vida em minha barriga. Sei que será menina!

Minha ansiedade e felicidade não duram muito. O pai de minha filha encontra-me nesse local com um olhar gélido e profundamente assustador. Por medo, olho ao redor e percebo-me sozinha com aquele homem de intenção sinistra. Primeiro, as palavras vomitadas com ódio as quais eu não consigo compreender. Sinto-me totalmente confusa, em pânico, minhas pernas fraquejam, falta-me o chão e o ar. Por quê? Como ele pode não amar nossa filha? Pare de referir-se a ela como uma coisa, um objeto a ser descartado... Oh! Aborto?! Está completamente ensandecido? Jamais! Meu bem mais precioso deste mundo, minha filha que eu amo mais que a própria vida, nunca! Afaste-se de mim, não encoste suas mãos em mim, nem um dedo sequer. Não! Não quero! Saia! Deixe-nos em paz. Não quero escutar mais nada, quero você longe de mim! Não, me solte, solt... Socor... Mhupm...

Senti meu peito frio. Usei todas as minhas forças, toda a minha coragem e valentia, mas ele me dominou e imobilizou. A vida esvaiu-se de mim... impotente. Um único corte limpo e seco gelou meu peito. Ele prendia meus punhos com uma mão e tapou-me a boca com a outra, sufocando-me. Caímos no chão, meu corpo sem vida, com um punhal fincado no coração. Sinto ainda hoje a sensação fria daquela lâmina. A impotência por não ser capaz de proteger a vida que eu nutria em meu ventre. Deus confiou-ma e eu falhei.

 


Dinamarca, quiçá entre 1670 e 1810. Sou um garoto de onze anos aborrecido, encarando o lago nos arredores de nossa casa. Sentado nu na parte mais rasa sinto a areia grossa debaixo de meus pés, apoio a cabeça nos joelhos, cabisbaixo, enquanto o vento levemente acaricia meus cabelos louros ondulados. Meu pai quer mudar-se do campo para uma cidade portuária. Eu sei que as águas lá serão sujas e feias. Não quero ir, mas ele não considera a minha vontade. É como se não existíssemos para ele. Há apenas o seu trabalho e somos quase como um peso que ele precisa carregar. E foi assim que eu cresci, com um pai ausente e distante, resmungão e mal-humorado.

Mesmo assim, conquistei certo sucesso na vida. Encontrei uma linda esposa, tivemos um casal de filhos maravilhosos durante a infância. Nunca fomos uma família de posses e meu filho, após certa idade, sabia escancarar com ferocidade esse fato. Acusava-me de ser preguiçoso e acomodado, homem sem ambição incapaz de satisfazer a família. Minha esposa e filha, talvez por circunstâncias da época, eram mais conformadas e sorriam sempre. Descobri, muito mais tarde, que sorriam apenas nos lábios enquanto carregavam a decepção nos corações. Nunca tive preguiça, mas também nunca tive a energia necessária para alimentar a ambição que meu filho anseava. Sentia-me impotente perante a vida. E o tempo passou, e ele saiu cedo de casa em busca de suas realizações, entristecendo a nossa casa por causa da revolta que lhe alimentava o ímpeto.

Na velhice, descobri-me preocupado com minha filha. Após a morte de minha esposa, ela passou a cuidar de mim e nunca teve tempo para si. Parece que lhe roubei a vida desapercebidamente e agora é tarde demais para corrigir-me o erro. Morri, mas não encontro a paz. Rondo a casa preocupado com minha filha, tentando compensar-lhe a solidão, a falta de um companheiro, de um marido, de uma família. Depois de um tempo não a vejo mais, a casa está vazia. Eu não sei o que fazer, para onde ir. Muito tempo depois entendi que a obsessão de meu pai por seu trabalho era a sua fuga do dever de reparação entre nós dois e que continei preso àquela busca de reparação por toda a minha vida e mesmo depois.

 


Brasil, 2002. Minha mãe convoca todos para uma reunião de família na mesa de jantar. Eu, meu irmão mais velho, minha irmã mais nova, ela e meu pai. Não me recordo da conversa. Apenas consigo reconstrui-la a partir dos assuntos pisados por minha mãe nos anos subsequentes. "Seu pai está saindo de casa. Lembram-se do apartamento que ele comprou e que fomos visitar? Ele comprou para a outra mulher com quem ele tem duas filhas da idade de vocês. Mesmo depois de ele ter me contado sobre a traição, insisti em continuarmos juntos por causa de vocês. É muito importante vocês terem um pai presente e por vocês eu mantive o casamento. Mas não está bom para ele e ele escolheu ir embora. Não sem antes contar ao meu pai que está indo embora porque eu sou muito mandona e não dou espaço à ele. É claro que eu preciso ser mandona, porque ele nunca resolve nada e quem tem de resolver tudo sou eu. A vida não será o que o pai de vocês está pintando de rosa... Vai ter mudanças sim porque eu não quero que ele entre mais aqui e ele terá de vir buscar vocês no portão para se verem". E por aí vai...

Sim, a vida mudou. Éramos parceiros e aprendi a arrumar qualquer coisa quebrada em casa com meu pai. E quando eu precisei tirar um parafuso espanado e enferrujado para consertar o portão do quintal e não consegui por nada no mundo, revoltei-me de raiva contra ele que me abandonara. Eu aprendera bastante, mas era apenas um adolescente com tanto mais por aprender. Tentei suprir a falta da figura paterna na família e assumi o papel de homem da casa. Pelo menos no que tangia consertos e zelar pela educação dos meus irmãos. Mesmo que apenas na minha cabeça fosse assim, o peso da empreitada foi muito real. A brincadeira jocosa da minha mãe junto da minha irmã era ela encontrar um novo namorado/marido e perguntar-me como seria minha reação. Eu dizia em tom de brincadeira aos meus ouvidos que contanto que ele ficasse longe das minhas ferramentas, estaria tudo bem. Traí minha namorada da época para finalmente terminarmos um relacionamento que eu desejara findar há anos e nunca tivera a coragem de sustentar meu "não" perante suas insistências, tal qual meu pai fizera com minha mãe e sua insistente ex-noiva.

Entre 2014 e 2016, durante meu luto por ser rejeitado pela minha namorada japonesa após terminarmos a faculdade, observei a insurgência de uma hemorróida interna. Começou timidamente e tornou-se mais evidente e pronunciada ao passar dos anos. Apenas algumas vezes ela se desfazia em sangue na privada e preocupava-me. De resto, após evacuar e limpar-me com a ducha, colocava-a de volta para dentro. Nunca tive problemas mais sérios com ela, mas estava intrigado. Como e por quê? De onde? Estudei um ou outro livro de psicossomática e descobri A Doença como Linguagem da Alma. O que minha hemorróida quer dizer-me?

Por volta dessa mesma época outro movimento tomou corpo em minha vida. No dia em que eu resolvi colocar um ponto final no meu luto pela japonesa, reuni todos os símbolos de nossa comunhão e fui à praia realizar minha catarse em papel. Encontrei um canto em eu pudesse ficar nu e fazer meu ritual de passagem pessoal. Dividi a praia com outra pessoa, que se interessou pelo meu corpo. Era um homem e eu quis explorar seu falo e descobrir se eu conseguiria ser tão boa quanta minha japonesa fora. E queria saber como fora para a ela experência inusitada de ter-me penetrando outro local envolto em mais tabu. Não fui bom em felação e dar para ele não teve prazer nem graça. Tempos depois, na solidão de meu apartamento de solteiro, aceitei a minha vontade de usar piercings. Ela nasceu durante as viagens pela pornografia cibernética e o contato com as mulheres com piercings naqueles vídeos. A beleza das jóias nos corpos femininos, umbigos, orelhas, nariz, lábios, mamilos, pequenos lábios deslumbrava-me. Eu queria aquela beleza para mim. Havia piercings nas costas ou nas pernas com uma fita que imitava um espartilho e achei muito sexy. Queria para mim. Tentei usar correntes conectando meus piercings, mas nem sempre era confortável. Eu ajudara algumas vezes a minha namorada a limpar as cutículas após ela aplicar seu esmalte. Como seria usar esmalte? Comprei esmalte vermelho e passei nas vinte unhas. Como é a sensação de usar uma calcinha fio-dental? Comprei calcinhas para experimentar. Ao encontrar minha atual esposa, ela me incentivou a depilar as pernas e as axilas. Incentivou-me a deixar o cabelo crescer. Ela gostava de mamar meus mamilos. Quão fresco seria usar saia? Emprestava a saia dela nos meus dias de home office.

As hemorróidas não se resolviam. Mas num dia de trabalho na empresa, em meados do segundo semestre de 2018, uma forte dor abdominal levou-me ao pronto-socorro da companhia. Analgésico e a vida continua. Até que na noite da véspera de Natal aquela dor apareceu novamente com força total. Eu me contorcia de dor, suava frio e atrapalhei a ceia da família inteira. Meu irmão leveu-me ao pronto-socorro do hospital e fui internado. O veredito: apendicite. Às doze horas do dia de Natal eu estava na sala de cirugia. Naquela tarde, minha então namorada e agora esposa, acompanhando-me, decidiu que meu pai deveria visitar-me. Minha mãe já estivera lá e faltava meu pai, que na época morava na mesma cidade. Ela lhe telefonou e não aceitou sua desculpa de recuperando-se de uma gripe. Insistiu para que ele viesse, mesmo que com máscara! E assim ela reuniu a mim e a meu pai. Pouco mais de quinze sem contato próximo até que um apêndice inflamado e a voz de alguém aparentemente de fora pôs um fim àquela covardia. Meu pai foi coagido a encarar sua vítima.

Mudamo-nos para a Holanda no início de 2019. Naquele carnaval vesti um vestido de fantasia e minha esposa maquiou-me a contragosto. Minha hemorróida convencera-me de que eu precisava ver alguém que fora excluída. Então aproveitei o carnaval para deixar o que quer que fosse fluir livremente à vontade. Deixei a mulher dentro de mim que precisava ser vista, aflorar. Usava meia-calça com minha esposa dentro de casa durante o inverno e flertei com a androginia. Queria usar saias, vestidos e vez ou outra fiz algumas incursões de saia pela vizinhança (para o terror e desolação da minha esposa, que nunca aceitou essa expressão). Nada de resolver a hemorróida. Fiz uma constelação familiar para ouvir a minha hemorróida. A constelação desenrolou-se completamente sobre meu pai, sua história de rejeição, sua família biológica e adotiva e seu senso de não pertencimento a nenhuma delas. Minha hemorróida desejava simplemente voar para longe, ejetada por um pum e pronto, ter um desfecho em risos. Até que um dia uma cliente da minha esposa contou-lhe ter me visto andando de saia na rua. O drama que minha esposa fez sensibilizou-me e busquei ajuda. Várias hipóteses, nenhuma confirmação. O que o divórcio dos meus pais e minha androginia e possivelmente narcisismo teriam em comum. Aonde estaria a chave para resolver-me? Em 1463.

 


"Eu vou contar de trinta e três até zero. A cada contagem, você descerá um degrau da escada. Trinta e três, trinta e dois... quinze, você está cada vez mais relaxado... quatorze, você está seguro, treze... oito, você vai sair da escada e irá para um lugar de felicidade e acolhimento de quando você tinha oito anos. O que você vê? (...) Você voltará para a escada no oitavo degrau. Sete... dois, um, nove meses, oito meses... um mês, você está no útero da sua mãe. Como é? O que você sente? (...) Pergunte a seu guia o que você deveria ter aprendido nessa vida. Você o reconhece como alguém do seu presente?".

Sim, ele é o meu pai e ele me matou juntamente com minha filha!

"Consegue dizer a ele que você o perdoa?".

Por ter me matado, sim, é fácil. Mas... por ter matado a nossa filha... ela não teve sequer a chance de tentar... Eu deveria protegê-la e não consegui... eu não consegui... não posso perdoá-lo por isso. Seria muito fácil para ele... e seria trair a minha filhinha!

"Reconhece a sua filha?".

É minha esposa.

"Peça perdão a ela. Peça perdão por não tê-la protegido". (...) "Agora diga que perdoa o seu pai. Ele aceita seu perdão?".

Consegui perdoá-lo somente após ter recebido o perdão de minha filha. Seria um ato de traição perdoar o homem que a matou! Eu não conseguia e estava preso naquele ciclo vicioso e desgastante... Culpada pela impotência e irredutível em não abandonar a minha filha. Mas, minha filha perdoou-me e eu pude, enfim, libertar-me da culpa e da vergonha. Pude perdoá-lo porque minha filha também o perdoara e, mais, perdoara a mim, que falhara consigo...

Mas o homem que nos assassinou não aceitava meu perdão, sequer após eu insistir que a energia que ele carregava é minha e que aquilo só faria mal a ambos. Ele ria de escárnio!

"E seu pai no presente, seria capaz de aceitar seu perdão?".

De braços abertos e com um sorriso no rosto!

Levei séculos... mas, finalmente consegui libertar-me!

 


I can protect myself now. Eu posso me proteger a mim mesmo agora, daqui em diante.

Eu jamais poderia atender às expectativas da Eliana, especialmente por proteção, porque eu não conseguia sequer proteger a mim mesmo. Minha redoma de vidro, minha armadura de película de plástico que envolvia totalmente meu corpo, o pênis de meu pai entalado em minha garganta gotejando sêmen em minha barriga para proteger a vida e impedir o rio de lava ao redor de engoli-la (um desenho simbólico que fiz durante minha terapia), tudo eram proteções para suprir a ausência das minhas próprias. Agora minha imunidade diplomática acabou. Eu posso encostar na vida, posso tocá-la, posso senti-la. Posso me machucar novamente. Sempre tive medo de a imunidade acabar porque nunca imaginei que ela fosse somente terminar quando eu tivesse recuperado os meios de suplantá-la por mim mesmo. Era assustador. Mas ela acabou e eu estou equipado novamente agora com meus próprios recursos para proteger-me. A garganta entalada era motivo de tanto ronco, o grito deseperado impedido de implorar por socorro.

Fui uma mulher holandesa, jovem, assassinada com uma criança em meu ventre. O homem que nos matou, pai da criança, é digno de meu perdão. O mais difícil é perdoar não pela minha vida, mas pela vida da minha filha que sequer teve oportunidade e que eu não pude proteger. Se rememoro, ainda sinto raiva e ódio e rancor contra aquele homem. Mas já senti também o poder e o benefício de perdoá-lo. E de receber o perdão da minha filha por ter falhado com ela. Perdoá-lo-ei quantas vezes forem necessárias para seguirmos nossas vidas em paz, harmonia e amor. Pai, eu te perdôo. Pai, obrigado por aceitar o meu perdão.


Andrey Bugarin Woiski Miranda
Eindhoven, 06 de agosto de 2020.

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