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Não sei o que eu fui ou quem era antes dos quatro anos de idade. Mais ou menos nessa idade, talvez aos cinco, eu quebrei o braço esquerdo. Era noite, eu brincava com meu irmão em nosso antigo quarto. Na brincadeira, ele estava doente e iria curá-lo com um remédio que estava no topo do supoerte da cortina. Escalei a janela, peguei o remédio e quando fui descer, meu pé escorregou do chinelo e a gravidade trouxe-me ao chão, não tão gentilmente quando eu gostaria de escrever aqui. Abri o berreiro e vieram ao meu resgate. Estamos agora na sala de estar e minha mãe fazia compressas de água quente no meu braço, com o pano ou gaze. O choro continuava desesperador e meus pais me levaram para o pronto-socorro. Era a época em que a Avenida Barão de Itapura de Campinas funcionava em duas mãos. O carro avançou pela avenida muito mais além do que eu estava habituado e para mim era como se estivéssemos muito, mas muito longe mesmo de casa. Eu estava deitado no banco traseiro e via as luzes passando pelo carro. Lembro das lâmpadas penduradas no meio da avenida por um cabo que a cortava de um lado ao outro. Por algum motivo eu nunca gostei das lâmpadas dispostas dessa maneira. Iluminação noturna amarelada também me aterrorizava; eu preferia as lâmpadas brancas na rua. Talvez porque os postes no quarteirão de casa era com luz branca. Fomos à praia pela primeira vez, com meu braço engessado.

 

Éramos crianças. Minha família era meu pai Luiz, minha mãe Mônica, minha irmã Natasha, meu irmão Yuri, minha avó materna Idália, meu avô materno Floriano, o irmão da minha mãe que morava com minha avó, Orlando; a irmã adotiva da minha mãe que morava com meus avós, Rosely; e minha prima Izes (que para mim era também filha de minha avó); o irmão da minha mãe, tio Wagner, com sua própria família; sua esposa, minha tia Mara e seus filhos, meu primo André, minha prima Kátia e minha prima Raquel. Éramos 15, seis adultos e nove crianças. A Raquel é a mais nova de todas, depois a Natasha e eu; o Yuri e daí já não sei mais a ordem. Há breves aparições e convívios com a minha tia paterna, Leila, seu marido Tom e seus dois filhos, Kiko e Edson.

 

Eu tinha vergonha dos meus avós. Não sabia quem eles eram. Tinha vergonha de não saber o nome deles. E tinha mais vergonha ainda de perguntar seus nomes. Sempre, em toda a minha vida, trouxe comigo essa vergonha de demonstrar minha ignorância em assuntos tão triviais quanto o nome de alguém. Até hoje, com meus trinta e três anos, consigo ter uma conversa noite afora numa festa com alguém e não saber seu nome; e ter vergonha de perguntar. Muitas vezes exponho e pergunto, mas só ao custo de superar esse medo.

 

Eu achava muito feio usar shorts e agasalho. Para mim, shorts demandava camiseta de manga curta ou regata e agasalho demandava calça. Misturar as peças era violar a norma. Na rua encontramos uma coleguinha de escola e sua mãe. Lembro que a coleguinha tinha cabelos e olhos claros. Parece-me que ela morava na rua debaixo. Talvez voltássemos da escolinha, que era no quarteirão da minha casa, na rua detrás. Ela usava o uniforme da escolinha, com o shorts e uma blusa de manga comprida. Naquele dia eu também vesti meu agasalho quando minha mãe pediu, mesmo estando de shorts.

 

Na escolinha havia um pé de jabuticabeira e um mágico que era namorada de uma das professoras. No dia em os alunos receberam a carta com o convite para a festa junina, minha avó foi buscar-me na escolinha no lugar da minha mãe. Eu fiquei tão enfurecido e emburrado que quando chegamos em casa, vinguei-me da frustação colocando a carta no ralo da garagem. Imagino a tristeza da minha avó e nunca lhe pedi desculpas por isso. De alguma maneira mágica, minha mãe sabia tudo sobre a festa junina e mesma sem a carta (ou ela a pegou do ralo?) fomos a festa semanas depois.

 

Havia um brinquedo de girar uma hélice e fazê-la subir pelos ares. Desses brinquedos que vêm junto com algum doce. Ela era amarela. Era intervalo na escolinha, à tarde, creio. Eu brincava sozinho e de repente fiz cocô. Foi um certo alarde. As professoras vieram ajudar-me. Não entendiam porquê eu não pedi para ir ao banheiro. Acho que fazer cocô era permitido apenas em casa. Talvez existisse na minha cabeça essa regra, tal qual a regra da roupa. Sei que no final do dia minha mãe me buscou e eu estava com uma muda de roupa limpa, emprestada da escola. Mas a memória não registrou nada sobre como eu me lavei ou me lavaram. Talvez eu tenha tomado banho, já que naquela idade eu já me considerava totalmente senhor de mim, autônomo e independente com total conhecimento sobre o mundo. Alguns dias depois, na escolinha, fui ao banheiro fazer xixi e havia três amigas lavando as mãos na pia do banheiro. Alguma delas mencionou algo sobre o evento do cocô e eu respondi dizendo que havia aprendido a pedir para ir ao banheiro quando o intestino apertasse. Fui à privada, abaixei o short e a cueca até o pé (acho que toda criança faz xixi assim) e fiz meu xixi. Elas ficaram de cochicho até que uma professora passou e tirou-as de lá. Parece uma cena inverossímil demais, mas é o que lembro.

 

Muitas vezes eu e meu irmão fazíamos xixi juntos. Era normal vermos nosso pai fazer xixi. Um dia, juntos, eu e meu irmão, conseguimos fazer tantas bolhas de xixi na privada quanto nosso pai fazia. Ficamos muito felizes. Uma criança só jamais conseguiria tantas bolhas quanto um adulto.

 

Eu tinha um melhor amigo chamado Daniel. Um Leandro era nosso amigo também. Nessa época eu comecei a aprender a tocar violão. Meu pai tocava violão.

 

Meus pais tinham uma chácara e lembro de nós plantando um monte de semetes em saquinhos de plástico preto para fazer mudar de uma cerca viva para a chácara. Tínhamos o plano de fazer um campo de futebol na chácara. Eu e meu irmão jogávamos bastante futebol. A parte da frente da chácara nunca, onde o campo ficaria, nunca foi feita. Cultivamos o fundo dela, com feijão, um pomar de cítricos e uma latada de maracujá. Eu amava trabalhar com plantas e terra. Mesmo com a mão estourada de bolhas, pedi para minha mãe amarrar uma meia nas mãos para eu continuar capinando com minha enxada. Meu pai contratou um homem para tirar o mato de toda a cerca, para plantar a cerca-viva. Ele fez tudo em um dia apenas. Sei que eu demoraria semanas, mas eu tinha orgulho da minha habilidade com a enxada. Um dia, uma vaca entrou na chácara e comeu tudo. E porque o dono da venda nunca abria o registro de água para nossa chácara quando não estávamos, as plantas secavam e não desenvolviam. Nunca mais fomos à chácara.

 

Seu eu abro, fecho; se começo, termino. Não dou ponto sem nó. Não deixo pontas soltas. Nunca finalizei meu relacionamento com aquela chácara apropriadamente. Passei anos buscando a utopia de morar num sítio, em meio à natureza, mas nunca realizei esse desejo. Cultivava plantas e mais plantas plantadas da semente em vasos pequenos demais para o porte daquelas árvores e sem o manejo adequado da terra para manter o nível de nutrientes às plantas. Terra preta e água por anos a fio não deveria ser o suficiente? Se a terra não tivesse mais nutrientes, a água da torneira os traria ou então a terra mudaria de cor. Jabuticabeira, limão siciliano, gravioleira, goiabeira, cajuzeiro, pata-de-vaca, fruta-do-conde, aceroleira, ipê, flamboyant e outras. Sempre em vasos no quintal da casa da minha mãe, na área de serviço do meu apartamento em São José dos Campos ou na varanda do apartamento da Eliana em Taubaté. Ter um pedaço de terra me é terapêutico. Mas preciso deixar o fracasso da chácara com meus pais, pois é a eles que pertence a responsabilidade pela chácara e seus desejos. Liberto-me do fracasso deles em relacionarem-se com a terra.

 

Uma vez fomos à praia com meus tios maternos e outra vez, com meus tios paternos. Eu não sabia a diferença na época, apenas gostava de brincar com meus primos. Não sei com quem fomos a primeira vez. Na vez com meus tios paternos, havia um bagageiro no teto do nosso carro. Para voltarmos da praia para a casa em que hospedávamos, meus tios se penduraram no bagageiro e fomos dentro do carro com eles no teto. Não sei se eles me enganaram, mas eu acreditei e ainda acredito. Estava anoitecendo e eu consigo imaginá-los sentados no bagageiro, segurando-se e meu pai fazendo as curvas devagar. Outra vez, com meus tios maternos, estávamos numa casa. Havia alguma discussão e eu inocentemente entreguei meu primo a respeito de algo relacionado a pornografia. Lembro de eu, meu irmão e meu primo discutindo uma estratégia para remediar a situação, mas parece que a Kátia entregaria o André de qualquer jeito. Em outra vez, numa outra casa de praia, chegamos da praia e fomos tomar uma ducha no quintal para lavar a areia. O desafio era entrar debaixo daquela água gelada. Eu, a Natasha e a Raquel fomos. Ficávamos pelados sem problemas. Meus pais estavam tomando banho no banheiro e a janela com vidros texturizados dava para o quintal. Minha tia disse para eu ir até a janela e avisá-los de que todos podiam vê-los, mas fiquei com vergonha porque tinha certeza que queriam tirar sarro de mim e dar risada de mim. Sempre desconfiava de situações assim, sempre desconfiando que queriam me expor e rir de mim. Carrego essa desconfiança até hoje em dia. Quando fui visitar minha sogra pela primeira vez, fui bater milho no moedor (aquela tigela côncava de madeira, usando um pedaço de madeira para socar o milho – há uma palavra para isso que esqueci). Eles sendo da roça e acostumados a isso, eu sendo da cidade e moendo o milho pela primeira vez. Não quis dar margem para erros. Um amigo da família viu-me e observou que eu segurava firmemente o moedor enquato socava. Ele disse que eu deveria deixar o socador de madeira escorregar pela mão, ou faria bolhas. Eu pensei que ele queria era ver uma farpa de madeira entrar na minha mão para rir da minha inabilidade. Não aceitei a sugestão dele, mas quando terminei percebi as bolhas que se formavam em minha mão. Depois raciocinei que eles usam o peso próprio do moedor para moer, e não a força dos próprios braços. A força é para erguer o moedor e imprimir aceleração para baixo, usando a gravidade para fazer o resto do serviço. Observei, posteriormente, que o moedor, apesar de madeira rústica, era bem liso. Então percebi a sinceridade de sua observação. Ser motivo de chacota sempre me incomodou demasiadamente. Meu irmão era o mestre em tirar-me a paciência fazendo-me de bobo, palhaço e motivo de riso, inclusive na presença de amigos ou colegas. Coloco até hoje muita energia e esforço para não dar margem algum à ninguém dizer nada contra mim. Não quero chacota nem críticas. Nada em que outras pessoas alimentem-se de mim. Não quero que outros me rebaixem para sentirem-se superiores e alimentarem-se disso. Por muitos anos cultivei o hábito de apresentar minhas ideias apenas quando finalizadas, para que ninguém as criticassem, para que todos as aceitassem. Nunca atingi esse objetivo e cada vez mais impedia-me de mostrar-me aos outros, esperando alcançar a perfeição perseguida em meu isolamento antes de finalmente sair ao mundo e ser aceito. Ainda carrego o medo da rejeição. Esse medo afasta-me da vida.

 

Na volta da praia, o pneu do carro furou. Viajávamos em dois carros e um deveria ajudar o outro. Mas o pneu do nosso carro furou e meu tio seguiu viagem. Ficamos abandonados no meio da estrada. Meu pai foi trocar o pneu e eu fui o único a ficar dentro do carro. A chave de roda espanou e foi com muita espera que alguém parou para emprestar uma chave. Ele trocou o pneu e paramos em algum Carrefour para telefonarmos de um orelhão para meus avós para tranquilizá-los de nosso atraso. Mas eu chorei o tempo todo em ficamos abandonados no acostamento.

 

Abandono, rejeição, chacota.

 

Entre os mais novos era normal ficarmos pelados, eu, Natasha e Raquel. Entre os meninos também, eu, Yuri e André ou eu, Kiko e Edson. Entre os irmãos também, eu, Yuri e Natasha; até com meus pais. Uma vez na casa dos meus pais meu primo mostrou-nos no computador algumas animações pronográficas. Era o rosto de uma mulher e um pênis. Era tudo em preto em branco, pixelado com todas as limitações tecnológicas da época. Para mim, aquilo mostrava alguém fazendo xixi na mulher. Minha mãe disse que eu e o Yuri precisavamos puxar a pele do pênis para ela desgrudar da glande. Quando perguntei a ela a razão, ela disse para perguntar ao meu pai. Ele respondeu que era para evitar doenças. Então, durante esses exercícios em prol da saúde aprendi que o movimento causava uma cócega gostosa. E depois de um tempo comecei a imaginar se aquilo seria a sensação de fazer sexo. Eu não ejaculava, então para mim ainda apenas xixi poderia sair do pênis. Uma outra vez na casa dos meus tios estávamos apenas eu, o Yuri e o André. Ficamos a tarde pelados na piscina e pela casa. Fomos ao quarto do meu primo e ele pegou uma régua para medirmos nossos pênis. Lembro que para ser uma medição justa, deveríamos estar com o pinto mais duro que pudêssmos. Não lembro qual foi o resultado das medições. Mas foi uma situação normal. Tomamos banho juntos e a água estava quente que saía fumaça. Até no banho brincávamos: quem estava debaixo do chuveiro era o “homem-fumaça”. Tudo era brincadeira.

 

Uma vez meus primos paternos foram passar férias em casa. Ganhamos bonecos dos Cavaleiros do Zoodíaco e brincávamos um monte. Na hora do banho cabíamos os três na banheira e a brincadeira continuava. Alguns anos depois, eles foram passar férias novamente em casa. Já éramos maiores e uma dúvida pairava na minha cabeça e eu não ousava perguntar (porque me colocaria numa situação embaraçosa na qual os outros poderiam tirar sarro de mim): a gente iria tomar banho juntos? Meu irmão já havia iniciado sua trajetória de fechar a porta do banheiro ao fazer cocô ou xixi, tomar banho sozinho e eu ainda não sabia o que eu deveria fazer nem como agir. Por um lado, eu queria a liberdade de antes, mas pelo exemplo do meu irmão comecei a sentir vergonha dessas situações. Uma vez eu estava sentado na privada com a porta aberta quando a Rosely chegou em casa. Pedi aflito à minha mãe que fechasse a porta do banheiro. Ufs! Quando o Kiko e Edson chegaram, eles disseram que seria melhor cada um tomar banho de chuveiro, para um não usar a água da banheira já suja do outro. E essa foi a solução para minha aflição. Mas parte de mim entristeceu-se muda.

 

Até hoje reflito sobre a mudança de comportamento entre crianças e adultos em relação à nudez e aos momentos de necessidade fisiológica. É natural? É cultural? É reflexo do amadurecimento pscicológico? É hipocrisia?

 

Eu e minha irmã costumávamos tomar banhos juntos. Vivíamos juntos, brincando juntos a maior parte do tempo, inclusive no banho. Muitas vezes três tomávamos banho na banheira e cada um tinha o seu lugar, na ordem de nascimento. O Yuri numa ponta, eu no meio e a Natasha na outra ponta, de onde saía a água para encher a banheira. Mas eu e a Natasha tomávamos banho de chuveiro juntos muito mais frequentemente. E brincávamos de cabeleireiro. Ela lavava meu cabelo e ficava inventando os mais diversos penteados. Eu ficava sentado e ela se divertia. Quando trocávamos de posições, não tinha tanta graça porque o cabela dela era comprido e eu não conseguia inventar tantos penteados. Sempre senti que eu levava a melhor na brincadeira. Minha mãe diz que ela era bebê dificilmente ficava de roupa. Certa vez, no quintal, depois de brincarmos na piscina, ela queria me mostrar um olho que ela descobriu no seu corpo. Anos depois descobri que aquela parte de seu corpo é chamada de clitóris. Outra vez, já estávamos mais crescidos, nossos pais saíram para fazer compras e fomos brincar na piscina, nós três. Por qualquer razão que desconheço, o Yuri estava insistente para que ficássemos pelados. E por qualquer razão que desconheço, eu e a Natasha estávamos relutantes. Mas ele insistiu e jogamos nossas sungas e biquínis pelo quintal. Quando minha mãe chegou e viu as roupas de banho jogadas pelo chão, ficou brava. Chamou meu irmão para conversar e acho que deu uma bronca nele para não nos forçar mais a ficar pelados. E assim a vida e a realidade foi mudando e cada um foi criando seu espaço íntimo. Um choque entre espaços íntimos ocorreu muitos anos mais tarde, durante nossa adolescência. Meu irmão deixou um CD no banheiro com uma capa pornográfica que minha irmã viu e achou altamente repugnante. Meu pai chamou meu irmão e disse para ele não deixar mais essas coisas à mostra. Outro momento foi quando eu e o Yuri dividíamos o quarto ainda; ele descobriu que um canal da TV à cabo exibia mulheres nuas e tínhamos uma TV no quarto. Ele assistia enquanto eu dormia e trocava de canal quando eu me remexia na cama. Então eu fingia estar dormindo para descobrir o que ele estava vendo e para evitar embaraços. Não compartilhamos aqueles momentos, mas o vivenciamos escondidos um do outro.

 

Uma vez, na casa da mina tia Mara, estávamos eu a Natasha e a Raquel. Dessa vez, fui eu quem insistiu para brincar na piscina pelados. Deixamos as roupas de banho na piscina mesmo e uma delas ficou flutuando até encontrar o canal de sucção aonde se conecta o aspirador. Ao invés de circular a água pelo ralo inferior, meu tio deixou a água circulando pelo canal de sucção. De repente, eu percebi que o jato de água tinha parado e o motor continuava ligado. Entendi que a roupa entrou no cano e o entupiu. Fiquei morrendo de medo da bronca. Tentamos desentupir o cano, sem sucesso. A situação ficou mal resolvida ou mal explicada. Acho que a Raquel levou a culpa e nem sei como meu tio consertou o problema. Por medo, calei-me e deixei a situação resolver-se por conta sem assumir minha parcela de responsabilidade e nem me desculpar.

 

Omissão. Carrego comigo ainda a omissão. O medo das consequência é tão mais forte que me impele a fugir e omitir. Por volta de meus 29 anos relacionei-me com uma mulher divorciada de um colega de trabalho, por alguns meses. Transamos sem camisinha e paramos de nos ver quando ela percebeu que nosso relacionamento era oportunista e não tinha intenção de seriedade alguma. Um ou dois meses depois ela me conta que estava grávida. Apavorei com a possibilidade de eu ser o pai. Não estava preparado para isso. Seria um erro infame que definitivamente minha mãe reprovaria. Mas não tinha coragem de perguntar diretamente a ela se eu era o pai porque tinha medo de ela se aproveitar de mim e exigir pensão ou cuidados à criança. E eu não conseguiria pedir uma prova de DNA, pois isso implicaria minha desconfiança na palabra dela, seria acusá-la de mentirosa. Eu não admitia ser acusado de burro e nem de ofensivo à honra de alguém. Fiquei em agonia por meses até finalmente perguntar, da maneira mais sutil que eu consegui, quem era o pai. Ela disse que eu não sou o pai e sim o namorado dela, pois ela acompanhava seu ciclo e sabia com qual dos dois transou quando estava fértil. Nunca compartilhei minha agonia com ninguém. Nunca pedi ajuda a ninguém pois sempre evitei me expor. Expor significa assumir uma posição. Assumir uma posição sempre significou em minha mente correr um risco incalculável de ser rejeitado, não ser aceito e de ser humilhado.

 

Outra situação mal resolvida com minha prima Raquel foi quando eu já estava na faculdade. Era uma festa na casa da minha tia Mara, minha namorada da faculdade Kelly estava junto. Era de noite. A Raquel falou sobre fazer uma cirurgia plástica nos seios, apalpando-os. Minha tia Mara havia dito tempos antes desse momento que a Raquel gostava de mim quando éramos mais novos e isso ficou na minha cabeça, pois eu nunca o soubera. Eu quis resgatar aquele passado e retribuir o gostar de minha prima, para mostrar-lhe que se eu soubesse, correspoderia a ela de volta. Isso foi a expressão da minha vontade de fechar as pontas soltas com a Priscila, com a Marcela e com a Bianca, mas principalmente com a Marcela. A Priscila era amiga da Tatiane na pré-escola. Ela tinha cabelo encaracolado e gostava de lilás. Por alguma razão ela não queria que eu sentasse mais ao lado e um dia ela trocou de lugar, eu troquei de lugar para ficar ao lado dela; ela trocou de novo, eu troquei; ela trocou de novo e a Tatiane disse “não percebeu que ela não quer ficar com você”; a professora perguntou se tínhamos acabamos o troca-troca e a aulinha continuou. Mas a Marcela foi uma menina no segundo ano do primário que viva correndo atrás de mim no recreio. Eu fugia dela e adorava a brincadeira, porque todos tentavam me pegar e eu escapava de todos. Um dia, ela fez com que alguém me entregasse uma carta com alguns chocolates. Estava escondido no banheiro dos meninos, que era meu pique para descansar. Dividi o chocalte com meu amigo e acho que dei a carta para ele. Eu não quis nem abrir. Uma menina gostando de mim?! Não fazia ideia de como agir, do que fazer, simplemente fugi da situação e mesmo quando ela me cercou por todos os lados, fugi, omiti-me. O menino para quem entreguei a carta rasgou-a e deve ter entregado à Marcela. Ela chorou o resto do recreio. Quando voltamos à sala, ela me encarou, com os olhos vermelhos e mostrou-me a carta rasgada. Vi que tinha até um desenho, da Mônica e do Cebolinha que ela tinha feito. Meu medo, minha ignorância, minha fuga, minha omissão causaram-lhe tanta dor e tristeza. Eu, que não quero se rejeitado, rejeitei-a. Infligi a ela todo o mal do qual sempre fugi. Quis fazer as pazes com a Marcela através da Raquel. Mas também quis tirar uma casquinha dela porque seus seios eram muito maiores que de qualquer namorada que eu tivera até então. Eu lhe disse que ela não precisava de plástica nos seios e os apalpei para testar e mostrar-lhe a veracidade da minha afirmação. No final da festa, quando estávamos nos despedindo no partão, com nossos pais e irmãos ao redor, eu tornei a apalpar seus seios até que meu irmão deu uma bronca de irmão para eu parasse. A Kelly disse depois que aceitou aquilo porque somos primos. Mas a Raquel, a tia Mara e o tio Wagner nunca disseram nada. Nunca voltei ao assunto, mas na minha consciência há uma ferida provocada por mim.

 

Antes de namorar a Eliana, eu tive um caso rápido com a Célia. Eu estava interessado nela porque não conseguia relacionar-me com outras mulheres. Nós já nos conhecíamos e apesar da minha relutância em aceitar meu destino atado apenas ao círculo da faculdade, ela demonstrou interesse e nos relacionamos. A primeira vez eu não gozei na transa, apesar de talvez ter sido boa para ela. Para não ferir a auto-estima dela, eu insisti algum tempinho depois e tivemos outra transa com direito a gozo e tudo. Deixei quite a situação e mantive minha auto-imagem de alguém que não ofende a ninguém nem em pensamentos. Mas, conheci a Eliana e a promessa de manter o contato com a Célia foi por água abaixo. Ela deve ter ouvido de mim quando recebeu o convite para meu casamento. Ela não foi. Eu me senti isento de qualquer culpa, pois eu fui sincero com a Célia em todas as vezes e simplemente aconteceu de a vida trazer-me a Eliana. Mesmo assim eu sentia a situação como mal resolvida e sentia uma falta cometida por mim. Para remediar, pedi desculpas à Célia por texto via WhatsApp e ela disse estar tudo de boa. Mas eu não acreditei. Ficou no ar aquela sensação de eu ter enganado-a. Isso fere minha auto-imagem e ela exige reparação. São reflexos do meu perfeccionismo, reflexo do meu orgulho e da minha vaidade.

 

Com a Kátia eu dei uma mancada também. Era o aniversário de 50 anos da minha mãe. Eu me expus de maneira quase ridícula para a família inteira. E ninguém conversou comigo, mas todos conversaram com meu irmão e um dia ele me falou a opinião dos demais. Eu idolatrava a minha mãe e queria que ela tivesse uma festa de 50 anos que a satisfizesse os desejos. Na época, ela já era separada de meu pai e não perdia uma oportunidade para falar sobre sexo e como homem ter que ser bom na cama e tals. Quis arranjar uma festa com go-go-boy, com influência de ideias da Kelly. A festa sairia muito caro, então resolvi pedir a todos que ao invés de comprar um presente para minha mãe, contribuísse para uma festa particular dela com apenas mulheres numa loja de artigos eróticos que oferecia esse evento. Conversei com meu primo André, com meu tio Wagner e até mandei um e-mail para todos dizendo como eu queria uma super festa para minha mãe ao invés de uma festa dentro da norma. Citei como exemplo o tipo de festa que a Kátia organizou para os 50 anos da tia Mara e ao invés de empolgá-la com minha visão, ela se ofendeu com a comparação dos dois tipos de festa. Ela comentou com meu irmão que até contribuiria, mas que não iria à festa de jeito nenhum. E eu soube por meu irmão que todos acharam estúpida a minha ideia porque eles contribuíram com algo que não usufruiríam. Se foi egoísmo deles ou não, o fato é que a história toda chegou aos ouvidos da minha mãe e ela mesma disse que jamais participaria de uma festa desse tipo porque morre de vergonha. Tudo o que ela falava sobre sexo era da boca para fora. E eu tomei as palavras como um desejo dela e impus a mim e aos outros o ônus de realizá-lo. No fim, ela fez um almoço na casa dela e pronto. A Kátia estava presente na festa e eu lhe pedi desculpas pela forma como me expressei. Apesar de ela aceitar as desculpas, sempre senti uma ferida nesse caso.

 

Outro momento em que eu me expus de maneira desmedida foi com o término da parceria entre a Eliana e a Carina. A Eliana reclamava tanto da Carina e sua falsidade e atitudes sorrateiras e como odiava-a e como queria nunca mais vê-la e de quão melhor fosse se ela fizesse a mudança dos seus móveis do espaço durante a noite e reclamava a ponto de dizer que se ela não respeitasse o horário estipulado para a mudança, chamaria a polícia ou a mataria. Inclusive a Eliana reclamou ferinamente de como ela nunca mais me pediria para resolver nenhum problema por ela e de como eu sou um péssimo marido, pois não reconheço o mal que os outros causam à minha própria esposa, que passa noites mal dormidas e eu não tomo atitude. Resolvi mais uma vez posicionar-me e expor-me. Liguei para o Rafael e pedi para que ele fizesse a mudança sem a Carina e que ela não atendesse sua última cliente. Paguei para eles a compensação de não atender a cliente. Tudo para descobrir que a Eliana, em declaração própria, é cão que ladra mas não morde. Tudo o que ela disse era da boca para fora porque ela precisava desabafar e em casa é o lugar mais seguro para dizer todas as asneiras que vêm à mente e expressar todos os desejos sem filtro.

 

Mas eu não posso expressar-me sem filtro nem mesmo dentro de casa sem incitar discussões e atiçar a insegurança da Eliana.

 

Quando eu era criança e tomava banho eu me lavava o corpo inteiro. E ficava imaginando como seria por onde o cocô sai. Pensava que fosse um buraco simplemente. Mas aí pensava se quando eu limpava, se não entraria algo água ou se o sabão seria prejudicial caso ficasse dentro de mim. Certa feita, antes de aceitar a imposição desconhecida de criar meu espaço íntimo fechando a porta ao fazer cocô, e também quando eu não sabia me limpar sozinho. Eu tinha acabado de fazer o meu cocô e gritei pela minha mãe para ela me limpar. Da posição de sentado no vaso, a gente colocava as mãos no chão para a bunda ficar para cima e ela passava o papel higiênico. Eu gritei e gritei, mas dessa vez ela não veio. Esperei e gritei de novo e nada. Depois de tantar chamar, comecei a chorar porque eu fora abandonado e estava preso para sempre no vaso! Até que minha mãe passou pelo corredor, me ouviu chorando e perguntou o que aconteceu. Ela me limpou, mas fez pouco caso do meu desespero. Outra feita meus pais demoraram muito mais do que o normal para me buscar da escola primária. Era fim de tarde e todos meus amiguinhos tinham ido embora já. E eu comecei a me sentir desamparado e abandonado e com uma responsabilidade com a qual eu não sabia lidar em absoluto: cuidar de mim mesmo. Era como se eu estivesse condenado para sempre a não pertencer, era como se eu estivesse sem alguém que servisse de portal entre mim e a vida, sem a referência guia com a qual eu balizo meus dias, minhas atitudes, minhas ações. O que eu faria? O que eu deveria fazer? Eu apenas segurava o choro para não chamar a atenção de ninguém. Apenas me esforçava para ser invisível e aguentar o máximo possível aquela situação de solidão na qual eu deveria encarar o mundo por conta própria.

 

A minha introspecção clama fortemente pela capacidade de ser só e autossustenatável.

 

Quando eu tinha cinco anos descobri que estava há pouco mais de um ano na escola e que outras crianças começam mais cedo na escola. Pensei que já estava atrasado. Então essas outras crianças já sabiam ler e escrever e a tabuada e eu ainda estava começando. Por que minha mãe não me colocou na escola mais cedo? Como eu vou compensar esse atraso e me igualar às outras crianças? Nunca expressei esse pensamento. Seria o gérmen de um complexo de inferioridade? Outros pensamentos que foram marcantes: como será a família quando todas as crianças formos adultos? Quando meus avós estivessem mortos? Iria cada um para seu canto e não nos veríamos mais? E também um muito especial: como seria se nada existisse? Eu me esforçava para imaginar o nada e o que eu seria nesse nada, mas a contradição de eu ter consciência daquele nada e tudo ser nada era impossível de lidar; nunca consegui imaginar um nada absoluto. A vida acontece desafiadoramente!

 

Eu tive quatro melhores amigos na minha vida. É mais do que eu pensava! Dos 4 aos 6 anos, Daniel, supra citado. Branco, cabelo castanho médio armado. Dos 7 aos 10, Daniel, cabelo loiro em tigela. Sua irmã Débora virou amiga da Natasha. E brincávamos juntos uma brincadeira de perguntas e respostas na qual se evidenciava o desenvolvimento dos pensamentos sexuais. Seu avô tinha um sítio muito legal onde andei de cavalo e nadei no rio. A cada troca de escola, perdia meu amigo. A partir dos 11 anos não fiz mais melhor amigo. Tive amizade com um outro Daniel e uma vez em que ele estava em casa, ficamos sozinhos. Ele perguntou se eu tinha alguma revista de mulher pelada e eu tinha algumas que meu pai ia jogar fora e minha mãe perguntou se eu ou o Yuri não queríamos. Eu não falei nada novamente para não me expor a uma situação delicada (até quando assistíamos filmes em família em que havia cena de sexo, eu me imobilizava para não deixar transparecer nem que eu estava olhando e nem que eu não estava olhando – ficava invisível e não sei porque havia essa aura de tabu sobre sexo em nossa família), mas peguei do lixo reciclável quando ninguém estava vendo. Entreguei a ele a revista e ele perguntou aonde era o banheiro. Ao invés de aproveitarmos o momento para nos masturbarmos juntos como meninos fazem, segurei a vontade e não dei vida ao meu pensamento. Não criei essa intimidade nem com meu irmão, nem com meus primos nem com meus amigos. Depois ele comentou algo sobre ter ejaculado pela primeira vez e eu pensei que fosse brincadeira dele, para testar minha reação. Não disse nada sobre eu já ter ejaculado há tempos atrás. Fui ter uma melhor amigo apenas na faculdade, minha namorada de então. Kelly foi minha namorada e minha melhor amiga, até nos separarmos. Depois, a Laira, minha terapeuta, fez o papel de minha melhor amiga. Apesar do distanciamento profissional, a liberdade de conversar sobre qualquer assunto sem filtros era ótima! Atualmente, tentei convidar o Gabriel a ser meu melhor amigo. Mas a situação ficou toda atrapalhada depois que a Eliana disse que parecia que eu estava flertando com ele.

 

Numa das revistas com fotos de mulheres peladas que peguei do descarte de meu pai tinha uma mulher sem pêlos pubianos. Achei aquilo simplesmente o máximo! Encantei-me completamente. Meus pêlos já tinha nascido e eram fartos no púbis, períneo e ânus. Além dessa região, eu tinha pêlos finos nas canelas e nas axilas e um pouco, bem pouco de cavanhaque. Mas fiquei unicamente interessado em depilar meus pêlos pubianos. Primeiramente, apenas no púbis. Em especial porque durante o dia era muito comum meu pênis ficar ereto e, ao voltar a fica molinho, a pele voltar a recobrir a glande e nisso ela prendia alguns pêlos enrolando-os em si. E daí quando meu pênis mexia dentro da cueca, repuxava os pêlos. Era muito chato esses pêlos repuxando. Pesquisei um pouco na internet e vi que era comum mulheres depilarem-se e que para os homens, era comum apenas entre atores pornôs ou gays. Raspei uma vez meus pêlos e detestei porque coçava demais depois. Resolvi depilar com cera quente. Minha mãe tinha uma panela elétrica com cera e quando eu ficava sozinho em casa, usava-a. Nunca soube se minha mãe desconfiou. Era demorado e doído, mas aos poucos fui aprendendo a ficar mais ágil. Eventualmente, quis explorar depilar o períneo. Outra vez, o ânus. E assim fui mntendo meu púbis sem pêlos desde minha adolescência. Na faculdade, paguei para depilar a laser e depois, já trabalhando, comprei um depilador a laser portátil. Quando namorava com a Eliana, ela sugeriu de eu depilar as canelas e as axilas. Nunca havia tido interesse nessas partes, pois não me incomodavam. Mas resolvi experimentar, especialmente para saber o que tanto as mulheres sofriam. Não foi inveja das mulheres. Foi uma prova para mostrar que eu suporto ser mulher. Foi o meu jeito de compensar a guerra entre os sexos: um homem é muito bem capaz de suportar também tudo o que vocês, mulhres, suportam. Eu experimentei na pele tudo quanto pude da vida feminina, até mesmo sexo anal e oral com outro homem, para mostrar a igualdade entre os sexos. Investiguei a fundo o que diferencia ambos sexos e descobri pessoas não-binárias, transexuais, diferenças entre gênero e sexo biológico e a mistura que existe em todos os níveis. Identifiquei-me fortemente com a androginia. A única diferença cabal entre sexos humanos é o potencial de gerar outro ser. Ou uma pessoa tem o potencial biológico de gerar outro ser dentro de si ou não tem esse potencial. Minha expressão sexual busca esse equilíbrio e esse respeito. Por isso gosto de nudismo e insisto tanto em trazer essa prática e tema a discussões. É o meu desejo trazer a paz e o respeito mútuo. Eu sou pacifista.

 

Uma vez minha avó contou uma parábola. Cada vez que você ofende uma pessoa, você deve pregar um prego numa madeira. Cada vez que você corrigir a ofensa e pedir perdão à pessoa, você pode retirar o prego da madeira. No final, você até pode ter uma madeira sem prego algum, mas ela estará toda furada. Em minha consciência perfeccionista isso significou que o melhor era então nunca precisar colocar o prego em primeiro lugar. A estratégia que adotei foi a de nunca errar por nunca tentar. Isso me fez aprender a controlar minha raiva. Mas, agora, impede-me de aprender.

 

Minha criança abandonada quanda da separação dos meus pais clama por atenção. Ela não quer ser esquecida, ela não pode ser esquecida. Ela é a minha conexão com a vida, com a terra, com a energia vital. Ela é o meu yang, meu pólo quente, minha ebris, minha decisão. Minha criança é o caminho para eu viver o mundo diretamente por mim próprio.

Uma noite, quando eu era criança, eu estava atormentado. Me sentia incomodado com alguma coisa e eu não conseguia entender o que era aquela sensação, nem o que fazer com ela. Estava na sala de jantar, com a luz apagada. Apenas a luz da cozinha iluminava o cômodo. Perguntei à minha mãe e ela disse que aquilo era a minha consciência. Sério? Minha consciência? Então eu tenho uma consciência? Eu fiquei pulando de alegria em volta da mesa de jantar comemorando que eu tinha uma consciência. Mas ninguém me ensinou como escutá-la e como lidar com ela. Falavam que você apenas sabe e pronto. Cresci racionalmente e agora preciso lidar com o mundo e suas situações em que a lógica e a razão não propõe uma solução definida e fechada; preciso lidar com a falta de estrutura da informação, com a falta de completude da informação e decidir baseado em dados incompletos e modelos falhos e sem comprovação. Nunca precisara antes escutar minha consciência tanto quanto agora. Ou melhor, nunca precisei fortalecê-la ante outros comportamentos mais imperativos e dominantes. Eu deveria ter terminado com a Carina no início do nosso segundo ano do ensino médio. Era o que eu queria, mas me submeti. Minha consciência deveria ter sido mais forte que a proteção à minha auto-imagem. Colhi experiência sobre estar num relacionamento de co-dependência.

 

Eu trago algumas coisas bastante importantes da minha infância e da minha família. Trago a inocência de quando ficar pelado era normal; trago o medo de o mundo ser mais do que posso lidar; trago a distância da vida como proteção do abandono; trago o desejo de não deixar pendências abertas; trago a sensitividade de feridas que causei a outros ou à minha auto-imagem; trago a necessidade de um portal pelo qual eu interajo com o mundo e o qual é a minha verdade (era minha mãe e agora é a minha esposa – quando será eu mesmo?); trago a coragem de enfrentar meus piores medos; trago meu espaço íntimo tão dentro de mim que não preciso criá-lo externamente a despeito das regras sociais vigentes; trago os escudos contra expor-me opostamente à minha auto-imagem; trago em mim as feridas que a vida causou quando paulatinamente a minha família transformou-se em conhecidos distantes; trago em mim o desejo de um melhor amigo ou melhor amiga com quem compartilho minha intimidade sem filtros; trago o não-posicionamento como proteção à rejeição; trago a omissão como discernimento do que eu sei e do que eu preciso aprender; trago a desconfiança de armadilhas preparadas pelos outros para me ridicularizarem e se alimentarem de mim; trago a diretriz de nunca errar para honrar a minha avó; trago a diretriz de nunca tentar, para aplacar minha raiva descontrolada; trago a ferida ainda aberta de transformar-me em adulto, o fim mal resolvido e as pontas soltas da minha infância; trago a ferida da minha família mal resolvida e as pontas soltas entre meus pais e com a Natasha; trago a falta de um melhor amigo com quem eu possa existir sem filtros; trago o pacifismo de pântano; trago a frágil consciência que permitiu outros mecanismos mais necessários se destacarem nos desafios que enfrentei; trago a esperança de soltar o que eu não preciso mais para abrir espaço para novas conquistas!

 

Eu não preciso mais a diretriz de nunca tentar, pois já aprendi a controlar a minha raiva; eu não preciso mais do medo de enfrentar consequência maiores do que posso suportar, pois aprendi a ter fé; eu não preciso mais dos escudos para evitar me expor contrariamente à minha auto-imagem, pois vi-me orgulhoso e vaidoso e quero corrigir-me, quero ver-me humilde e amoroso; eu não preciso mais do não-posicionamento, pois a rejeição jamais será mais forte que o amor; eu não preciso mais da omissão, pois a humildade traz todas as oportunidades de aprendizado naturalmente; eu não preciso mais do pacifismo de pântano, pois eu sei buscar a paz verdadeira nos conflitos; eu não preciso da diretriz de nunca errar, pois minha avó é honrada com meu crescimento espiritual; eu não preciso mais da minha frágil consciência, pois agora há espaço para ela se desenvolver e fortalecer; eu não preciso mais da distância, pois eu acolho minha criança abandonada e eu não preciso mais valer-me apenas de meu intelecto, pois minha intuição é sábia e eu sei ouvi-la.

 

A minha intuição é o meu terceiro olho e eu o abro agora!

Eindhoven, Holanda, março de 2020.

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